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sexta-feira, 11 de junho de 2021

REFLEXÃO - Um país diante da barbárie (2007 - 2021)

Um país diante da barbárie


Marcelo O. Dantas


05.06.2007 | 

Em sua formulação clássica, o grego Aristóteles define "virtude" como a capacidade de adotar posturas equilibradas diante de opções extremas e radicalmente opostas. Longe de constituir mero expediente conciliador, este meio termo requer do homem virtuoso lucidez e fibra, do contrário será incapaz de sobrepôr-se às forças dilacerantes da desrazão. Confrontado com a crise da violência, nosso país ignora a lição e vai-se dividindo entre os que defendem o recrudescimento das medidas repressivas e os que advogam a ampliação das políticas sociais. Semelhante impasse, além de improdutivo, baseia-se numa falsa antinomia. O combate ao crime e a promoção do bem-estar, quando implementados de forma correta, são estratégias que se complementam e legitimam.

As políticas sociais – entendidas em seu aspecto mais amplo – atuam no campo da profilaxia, oferecendo opções de vida ao cidadão adulto e ao jovem que se forma. O sistema penal, por sua vez, visa dissuadir o indivíduo a cometer crimes, ao mesmo tempo em que regula a punição dos infratores. Desacompanhado de políticas sociais, semelhante sistema torna-se facilmente instrumento da tirania e perpetuação da desigualdade. Em contrapartida, quando aplicadas em um ambiente de permissividade criminal e falência da justiça, as políticas sociais perdem por completo sua capacidade de prevenir o aumento da violência. Nos últimos anos, o Brasil avançou imensamente na área social, e nem por isso a a crise da segurança arrefeceu. Faltou à equação o poder dissuasivo da lei.

A certeza da impunidade – seja entre a população pobre, seja nas mais altas esferas do país – tem sempre o mesmo efeito: ela dá rédeas soltas aos indivíduos sem escrúpulos e vitimiza os cidadãos honestos. Em uma sociedade realmente democrática, existem direitos e deveres, regidos por um conjunto de leis. Cabe ao Estado zelar por que seus cidadãos sejam bem educados e tenham reais oportunidades de se tornarem pessoas íntegras. Mas para o bom funcionamento do corpo social, as leis precisam ser justas, eficientes e aplicadas de forma igualmente rigorosa para todos. Marqueteiros ou favelados.

A provocação faz-se necessária diante das evidentes implicações da crise ética sobre o aumento da violência. Entre os criminosos e, ainda pior, entre os jovens que contemplam a alternativa do crime é cada vez mais arraigada a convicção de que o sistema político brasileiro não passa de uma impostura. Para eles, todos são igualmente corruptos, e quem rege a nação é a lei do mais forte. Na mente de alguns, semelhante postulado se converte em senha para o regresso à barbárie. O traço mais característico da tragédia que vivemos não é o aumento do número de crimes, mas o crescimento exponencial dos atos de crueldade. Sequer as crianças têm sido poupadas. Sem lei e sem ética, o Brasil mergulha na selvageria hobbesiana do estado-de-natureza.

Em seu livro Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt cunhou a expressão "banalidade do mal" para traduzir a aparente ausência-de-pensamento ('thoughtlessness") com que um burocrata nazista organizou a deportação de milhões de pessoas para campos de concentração. Ao contemplar o carrasco, a pensadora judia deparou-se com um homem medíocre, que nada tinha de demoníaco. Concluiu, assim, que o mal não é um fenômeno radical, mas apenas extremado. Tal como os fungos, ele se espalha rapidamente pela superfície, sempre que encontra ambiente propício. Creio que semelhante conceito ajuda a entender situações como a brasileira, em que crimes hediondos vêm sendo cometidos de forma cada vez mais corriqueira. Se Eichmann pôde agir tão monstruosamente por estar ao abrigo de regras totalitárias, os carrascos nacionais prosperam na esteira do descrédito de nossas leis. Em ambos casos, a vida vale pouco e os parâmetros morais inexistem.

Segundo a pensadora, em reflexão que contaria com o aval de Aristóteles, a melhor forma de resistir ao avanço do mal é a recusa de toda superficialidade, mediante o pensamento crítico e a ação conseqüente. No caso brasileiro, semelhante recomendação equivale a um alerta contra o vício tão nosso da banalidade do bem. Não será com leis débeis e paternalismo crescente que iremos superar a crise atual. Tampouco nos valerá seguir ignorando questões fundamentais como a sordidez do sistema penitenciário, a corrupção da polícia e a ineficiência da justiça. De nossos dirigentes, espera-se que tomem a frente da situação e dêem ao país os exemplos de que ele tanto necessita. Enquanto persistir o estado de anomia e falência ética, continuaremos indefesos diante desta espiral da violência, que nos brutaliza a todos, e periga vitimar a própria democracia brasileira.



Obtido em 11 de junho de 2007, postado em 13 de setembro de 2021.

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